Racismo
e Assistência Social: um breve ensaio poético-reflexivo[1]
Daniel Péricles
Arruda[2]
As indagações e reflexões apresentadas neste
texto têm por finalidade contribuir para o diálogo sobre o racismo e a
assistência social sem a intenção de serem conclusivas, mas indicar pistas e
sugestões acerca do tema. É como se fosse uma poesia sem ponto final, pois,
pelo movimento das ondas e pela potência dos ventos, certamente, ainda podem ser
percorridos vários horizontes, nesse mar… Então, vamos lá!
Sem dúvida, não somente a desigualdade
social, mas também a desigualdade racial, se inserem na trama perversa de
produzir indiferenças, traumas, sofrimentos e desvantagens. A desigualdade
social – como a condição da posição do sujeito nas classes sociais e nos
territórios –, e a desigualdade racial – no sentido da distinção de
oportunidades e das construções simbólicas e dos preconceitos evidenciados a
partir dos aspectos étnico-raciais –, são diferentes, mas se articulam e se
retroalimentam.
Não
é por acaso que parte significativa das pessoas e das famílias atendidas em diversos
serviços de variadas políticas públicas e sociais, conforme as especificidades
territoriais, pertence a grupos étnico-raciais que, historicamente, sofrem
preconceitos, em especial, as mulheres negras e periféricas.
Nesse aspecto, percebe-se que conhecer a
história, a ancestralidade, a cultura, a ideologia e a cotidianidade é
importante para compreender e analisar as formas como o racismo se faz presente
em nossa sociedade e nos espaços sócio-ocupacionais.
Os dados estatísticos assim comprovam.
Basta olhar quem é a maioria ou aqueles/as que compõem o contingente
significativo, entre as crianças e os adolescentes, que estão em acolhimento
institucional; os que estão à espera de adoção; os adolescentes e jovens que
estão em cumprimento de medida socioeducativa; as pessoas que estão inseridas
no sistema prisional; aqueles/as que se encontram em situação de rua; ou que
habitam nas periferias; que são mais vitimados pela violência letal; os que
cometem suicídio; as mulheres que são acometidas pelas violências, como o
feminicídio. Mais do que dados, considerando os casos subnotificados,
percebe-se que as violências e a negação do direito não ocorrem do mesmo modo,
com o mesmo significado, volume, com a mesma frequência e intensidade para
todos os grupos sociais. Isso não significa nada para você?
É certo também que se trata de um tema
sensível, já que muitas pessoas atendidas não se reconhecem como negras, ou
apresentam dificuldades e/ou conflitos para se reconhecerem como tais. Há
também o desafio de perguntar ao outro como ele/a se entende ou se identifica
étnico-racialmente e o manejo para explicar os motivos da questão. Perguntar
pela raça/cor é uma aproximação íntima, toca internamente, por isso
requer cuidado, preparo e fundamentação. É necessário preparar o ouvido do
outro para a pergunta, ou seja, informar que, para conhecê-lo/a e tomar as
ações técnicas necessárias, bem como os devidos encaminhamentos, o/a
profissional do serviço fará algumas perguntas, e que pode ficar à vontade para
respondê-las!
Nessa lógica, não se deve banalizar ou
ignorar, mas abrir questões; refletir sobre os contextos; propor ações; e
participar das práticas antirracistas que, sem dúvida, são necessárias e
emergentes, na atualidade. Em outras palavras, é relevante que o/a profissional
indague a si próprio: Quem são as pessoas atendidas pela assistência social? O
que essa informação tem a dizer? Será que a assistência social contempla
dispositivos de atenção para a totalidade do público que dela necessita,
conforme suas especificidades? Quais motivos ou razões podem explicar o racismo
vivenciado por trabalhadores/as nos espaços sócio-ocupacionais?
Considero que todo ser humano precisa de
assistência. Todo ser humano precisa de acolhimento, reconhecimento para viver
com dignidade e condições satisfatórias para a preservação da própria vida. Assistência
no sentido amplo da palavra, quer dizer, nem toda assistência é estritamente social.
A palavra social é muito vasta, em razão disso, é relevante atentar-se
às suas particularidades. Isso parece óbvio, mas o que acontece quando o que é
simples se torna difícil?
O ser humano precisa do outro para construir
o seu eu, as suas identificações e os seus caminhos. Quero dizer que o reconhecimento
é adubo em nossa plantação humana. E ainda encontramos árvores descuidadas em
pleno solo fértil, pois não lhes permitiram usufruir das riquezas minerais, da chuva,
do sol, dos animais que procuram abrigo e alimentos para os seus filhos, ou
seja, das riquezas socialmente produzidas!
É sabido que o Brasil é mundialmente uma
das grandes potências econômicas, mas, por outro ângulo, ocupa preocupantes
posições no que se refere ao desenvolvimento humano. Isto é, um país rico, que
produz riquezas e pobrezas. Esse é um contraste de um país desigual que
empobrece parte expressiva da população e por vários motivos. E a riqueza significa
que temos também processos de enriquecimento de um pequeno grupo. Essa é uma
regra básica da hierarquização do poder, do privilégio e da
desigualdade. Só se pode ser pobre em relação a algo ou alguém!
A pobreza tem diversos níveis e expressões,
e não é somente material, habitualmente, a que mais sobressai, traduzida como expressão
da pobreza econômica. Há pobrezas em relação aos afetos, aos valores morais, aos
sentidos e às subjetividades.
Então, nessa reflexão, as pessoas são, na
verdade, empobrecidas por um sistema que promove expressivos contrastes de
direitos, deveres e modos de vida; que desvaloriza determinadas culturas em
relação às outras. Assim, as fatias do bolo não são proporcionais a todos. Na
verdade, nem sempre há fatias, às vezes, nem migalhas, mas somente o aroma do
bolo já devorado pelos glutões no banquete. É o que sobra… E, até mesmo, há
situações em que se tem o bolo inteiro, porém, poucos vão comê-lo e a maioria jamais
poderá alimentar-se e sentar-se à mesa, pois o bolo já tem “dono”.
Refiro-me àqueles/as que, por alguma
situação em suas vidas, precisam também da assistência enquanto política
pública, porque vivenciaram e/ou vivenciam situações de desamparo – visto
que só se pode ser desamparado, uma vez que foi amparado
primeiramente. Eis um elemento a ser observado –, dentre outras expressões que
comprometeram e/ou comprometem seus direitos tão fundamentais e básicos. Isso
também parece óbvio, mas o que há por detrás de um direito básico que não se
efetivou? O básico é basicamente básico, baseio!
Assistência social não é algo que se dá.
Não é algo viabilizado por merecimento, nem como brinde ou troca de favores.
Assistência social não significa assistir sem fazer nada, tampouco estar disponível
a receber o que as outras políticas não podem, não sabem, não querem, ou, como
se diz, “não dão conta”. Sendo que, em muitas vezes, não fizeram o que é de sua
responsabilidade. Em síntese, a assistência social, portanto, é um ato de
cuidado, proteção e de reivindicação da vida! Que se faz com parcerias (inter)institucionais
e comunitárias.
Nisso, penso que precisamos nos sentar e
conversar com parcimônia para sistematizar os fluxos de atenção dessa
vegetação! Para elaborar e assumir estratégias e escoar possíveis tensões. Não
será um julgamento, e sim um diálogo aberto e acolhedor, acolher a dor.
De fato, é preciso garantir dotação orçamentária,
investir em metodologias, educação permanente e refletir quando se diz que “a
rede não funciona”. Uma rede que não funciona para o pescador não alcançará o
objetivo de sua pesca. Bem, além da rede de pesca, existe a rede para descanso;
a rede do gol do jogo de futebol; a rede virtual (internet); a rede de amigos; a
rede de transporte; a rede de caça, enfim…
Outra passagem é a expressão “a rede tem
furo”. Toda rede, conforme seus objetivos, precisa de furos para apreender o
sujeito e possibilitar a respiração, visão e drenagem… Assim, furo é diferente de buraco ou rasgadura. O
significante rede é importante e sua utilização nos permite pensar no que queremos
dizer quando falamos em “rede” e “furos na rede”. São valorosas simbologias e
cada profissional representa um fio dessa rede.
É sempre recomendável também escutar o que
as pessoas e as famílias que atendemos têm a nos dizer, qual é a sua visão sobre
o atendimento e o serviço, a sua participação em espaços coletivos e públicos
para a discussão da política.
Enfim, com base nesses apontamentos,
identifica-se que a assistência social, em muitos territórios, lida com
sobreviventes geracionais do processo de escravização, quer dizer, a população
negra. E esse aspecto é relevante, pois contribui, diariamente, para um olhar
sensível e atento às estruturas e aos atravessamentos que estão em jogo no
trabalho pautado em valores antirracistas!
[1] Como citar este
texto: ARRUDA, Daniel Péricles. Racismo e Assistência Social: um breve ensaio
poético-reflexivo. São Paulo, 20 nov. 2022. Disponível em: https://www.vulgoelemento.com.br/2022/11/racismo-e-assistencia-social-um-ensaio.html
[2] Pós-doutor em Psicologia Social
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); doutor em Serviço
Social pela PUC-SP e mestre em Serviço Social (bolsista do Ford
Foundation International Fellowships Program, turma de 2010) pela
PUC-SP. Tem especialização Multiprofissional em Saúde Mental e Psiquiatria pela
Escola de Educação Permanente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (EEP HCFMUSP) e em Arte-Educação pelo Centro Universitário SENAC. É graduado em Serviço Social
pela PUC Minas. Em formação em Psicanálise no Instituto Langage. Professor da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP), campus
Baixada Santista, vinculado ao curso de graduação em Serviço Social, ao
Departamento de Saúde, Educação e Sociedade (DSES) e coordenador do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Vivências Artísticas, Culturais e Periféricas. É
arte-educa(a)dor,
rapper e poeta conhecido como
Vulgo Elemento. E-mail: pericles.daniel@unifesp.br – @vulgoelemento.