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NÃO É POUCA BOSTA

A transformação da lagarta em borboleta: poéticas sobre o sofrimento psíquico-acadêmico – Daniel Péricles Arruda (Vulgo Elemento)

 

A
transformação da lagarta em borboleta:

poéticas
sobre o sofrimento psíquico-acadêmico[1]

 

Daniel Péricles Arruda (Vulgo Elemento)[2]

 

O objetivo de ingressar
na Universidade é a realidade de muitas pessoas; graduar-se em determinada área;
dar sequência aos estudos e pesquisas; continuar se desenvolvendo enquanto
sujeito; até mesmo, o ato significativo de ser o/a primeiro/a da família, da
geração, ou da comunidade, a obter um diploma universitário e/ou seguir a
carreira universitária. Nesse horizonte, a trajetória acadêmica me faz
associá-la às transformações da lagarta em borboleta; aos múltiplos
atravessamentos das transformações do/a estudante em profissional. Sendo que,
para alguns/algumas, pode ser uma experiência saudável e primorosa. Porém, para
outros/as, não.

O ingresso na
Universidade não é tudo. Para muitos/as estudantes, é uma relação entre
conquistas e frustrações, prazeres e aflições, superações e desânimos, realizações
e conflitos, confirmações e dúvidas, parcerias e isolamentos. Por isso, é
preciso levar em conta as condições de permanência; saída para a atuação
profissional; retorno ou continuidade, por meio de participação em núcleos de
estudos e atividades de extensão; e de ingresso em cursos de aprimoramento, especialização,
mestrado, doutorado, pós-doutorado e livre-docência. Considerando também que
os/as estudantes possuem outras questões particulares que, comumente, fogem ao âmbito
da relação ensino e aprendizado, porque ocuparam e/ou ocupam outras posições em
suas vidas.

No contexto educacional acadêmico,
tanto na modalidade particular quanto pública – considerando as suas
especificidades institucionais, pedagógicas, culturais e territoriais – é comum
encontrar narrativas sobre o adoecimento de estudantes, que envolve, por exemplo,
ansiedade; angústia; depressão; insônia; cansaço extremo; estresse; pânico; fobia;
medo; irritabilidade; delírio; alucinação; baixa autoestima; memórias
indesejáveis, sentimento de culpa,  incapacidade
ou inferioridade; sentimento de não pertencimento; automutilação;
automedicação; ideação suicida; e o próprio suicídio, seja a morte física ou
simbólica; e demais aspectos acerca de somatizações e psicossomatizações.

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Além de outras questões observadas
em diversos/as estudantes ao longo da minha trajetória docente, como consequência
de traumas vivenciados na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino
médio; importantes incômodos e produção de sintomas no contato com determinados
temas estudados, inclusive por meio da transferência e identificação; traumas
vivenciados durante a formação acadêmica; insatisfação em não obter respostas
satisfatórias a problemas, posto que, muitas vezes, as soluções são de alcance
de resolubilidade da instituição, ou dos demais envolvidos; comunicações
encaminhadas e não respondidas (a não resposta é uma resposta); dificuldade
para acompanhar e compreender os conteúdos teóricos em razão da expressiva
quantidade de textos, disciplinas e demais atividades; receber tratamento desigual
ou hostil na relação grupal; não ter o reconhecimento dos outros; adversidades
de conciliar trabalho e cuidado dos filhos, ou familiares, com os estudos; desafios
de locomoção até a instituição; impasses na adaptação, ao mudar-se de cidade e
ficar distante dos familiares, amigos e rede de apoio; escassez de recursos
materiais em casa ou na instituição, como computadores, local adequado de
estudo e acesso à internet; limitações financeiras; alimentação inadequada; redução
do apetite; não conseguir apresentar trabalhos acadêmicos, tampouco escrevê-los
como gostaria (os chamados “bloqueios” ou “travas”); busca pelo perfeccionismo;
disputa por afirmação de conceitos e ideias; relação desgastante e/ou solitária,
quando em processo de orientação de trabalhos finais, e ser comum escutar a seguinte
frase: “Eu não sou orientado/a!”; insegurança para concluir o curso em razão
dos vínculos afetivos construídos no decorrer da formação e dos desafios de
inserção profissional, sendo estratégica a permanência do vínculo institucional,
principalmente, em atividade remunerada (bolsa de estudos); sentir-se exposto
ou desqualificado em bancas (o que chamo de “bancas coloniais”); abandono, vontade
de desistir ou trancar, temporariamente, o curso; dificuldade de abrir mão da
falta perante a realização do desejo; dificuldade para tomar decisões; dentre
outros diversos exemplos a partir dos aspectos estruturais e conjunturais no
que diz respeito às relações étnico-raciais, relações de gênero e orientação/expressão
sexual, classes sociais, religiosidades, posições políticas, aos contrastes
culturais, aspectos geracionais e ao acompanhamento de pessoas com deficiência
e imigrantes, dentre outras exemplificações.

Essa realidade envolve não
somente os/as estudantes, mas também os/as docentes e demais profissionais que
participam do contexto universitário. Porém, nesse momento, com foco no
sofrimento dos/as estudantes, emergem algumas indagações: O que o sofrimento tem
a nos dizer? O que se nomeia como sofrimento? Como apreender essas questões
considerando a bagagem singular dos/as estudantes construída antes de seu
ingresso na Universidade? Como identificar as tensões e determinados traços que
comprometem a saúde psíquica na perspectiva da prevenção, do manejo e dos
devidos encaminhamentos?

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Em minhas reflexões,
associo o respectivo tema ao processo de transformação da lagarta em borboleta,
também conhecido como metamorfose – termo de origem grega: meta (mudança,
transformação, além) e morfose (forma, aparência, aspecto) – o qual é
constituído pelo ciclo que compreende: ovo, larva (lagarta), pupa (crisálida,
casulo), até se tornar borboleta.

O ovo é depositado pela
borboleta adulta nas folhas de plantas. Após alguns dias, a larva eclode do
ovo, já como lagarta, e se alimenta intensamente, por vezes, iniciando da
própria folha em que o ovo estava; assim obtém energia para o crescimento e continuar
o seu desenvolvimento.

A lagarta, em seu
processo, passa por mudanças de pele, e, depois de alguns meses, de acordo com
a espécie, começa a fase da pupa, ou seja, utiliza-se dos fios para produzir o
casulo, reclusa e sozinha; em sua segunda gestação, preparando-se para o seu
segundo parto, dali a alguns dias ou semanas. É o momento em que forma o corpo,
as asas e antenas. E, finalmente, rompe o casulo, apresentando-se como
borboleta, para experimentar o seu primeiro voo e iniciar outro ciclo. Há
borboletas que conseguem viver por alguns dias, outras, por alguns meses; isso
conforme suas categorizações e condições socioambientais.

Em síntese, o “fim” da
lagarta faz nascer a borboleta. A lagarta, para voar, precisa abrir mão de sua
condição, para deixar de ser o que é, e realizar o seu desejo, sua meta. Entretanto,
o ato de voar não é simples e nem sempre é visto como sinal de prazer e
liberdade. Lagarta que não faz o seu casulo, não vira borboleta. Assim como a
borboleta que não deposita ovo não permite que a lagarta venha a nascer. Veja
quanto trabalho e energia são investidos e como as aparências dos processos não
se definem em si, uma vez que a borboleta não nasce como tal, mas é resultado
de um ciclo.

Toda borboleta, portanto,
um dia foi lagarta, mas nem toda lagarta conseguirá ser borboleta. O ciclo
exposto ainda envolve a transformação da borboleta em lagarta, porque borboleta
também morre, e são importantes essas ações para a manutenção e preservação de
sua espécie e para o enriquecimento da biodiversidade. Borboletas, juntas,
formam o coletivo nomeado panapaná.

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Toda borboleta tem registrada,
em seu passado, a experiência de ter rastejado e usado seus pelos e espinhos para
se proteger dos predadores que não sentem culpa, e sim prazer em devorar a sua
presa. Mas será que a borboleta sabe que um dia foi lagarta? Ou esse registro
está adormecido em seu inconsciente? Geralmente, a borboleta tem valor estético
positivo e de aceitação que a sociedade lhe atribui, diferentemente de quando
era lagarta. Quer dizer, muitos, da lagarta, têm medo, nojo, por ser sinônimo
de perigo, aflição, ameaça. Da borboleta, sentem admiração e encantamento; como
sinal de alegria, sorte, esperança. A transição de lagarta para borboleta não é
independente, pois precisa da natureza. Por ser vulnerável, preserva-se para
não ser acometida pelas ofensivas dos predadores, como formigas, aranhas,
sapos, pássaros e, inclusive, os seres humanos. Nenhuma borboleta é igual a
outra. Cada uma tem as suas próprias cores, experiências e demais traços
específicos. Mesmo as borboletas e mariposas são parecidas, mas não iguais!

E assim parece ser a
experiência universitária, a metamorfose acadêmica, e seus múltiplos processos
e ciclos, que nem sempre correspondem às expectativas lineares, formais e
culturais, próprias ou externas, de travessia, pois cada sujeito é único e vivencia
essa realidade conforme suas condições, sua linguagem e seu tempo. Ademais, as
pessoas não chegam vazias de conhecimento à Universidade – assim como na
clínica psicanalítica – porque passaram por outras trajetórias, romperam outros
casulos, podem chegar “encasuladas”, perceptíveis em suas histórias de vida, saberes,
ambivalências e dores, podem chegar como borboletas e terem suas asas cortadas.

As instituições de ensino
também podem ser casulos, devido ao ambiente transformador, protetivo, assim como
pelo aspecto controlador, opressivo. O que deve ser discutido e avaliado no
processo de formação universitária, pois o adoecimento psíquico-acadêmico pode
matar.

Ser
lagarta é uma possibilidade. Você não precisa ser borboleta. Lagarta e borboleta
são dois tempos distintos e que se comunicam. Não se pode atribuir valor moral,
pois cada uma tem a sua importância. Por isso, a Universidade deve oferecer
espaço para as duas, porque ambas são relevantes, independentemente do que são
e desejam ser.

Portando, se faz urgente legitimar
práticas educacionais de cuidado do outro, cuidado mútuo, voltadas às mudanças físicas
e subjetivas, às bases éticas; que se atentem às intempéries da natureza, aos
ataques dos predadores, ao tempo de cada um. Transformar o sofrimento em
palavras para escutá-lo, subvertê-lo, bem como considerar o que está oculto;
ter atenção aos detalhes, aos silêncios, aos cartazes fixados nas paredes, às
palavras. Refletir sobre o que é próprio e o que se produz no encontro com o
outro, visto que o sofrimento nunca é o mesmo para todos/as, mas o sinal importante
de uma turbulência durante o voo da borboleta ou de um tremor de terra sentido
pela lagarta. O sofrimento é um indicativo de que algo não está bem, de que o
desejo se encontra ameaçado. Sinal de que o psiquismo está reagindo contra
alguma investida.

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Uma vez que o sofrimento
psíquico-acadêmico fala de muitas ordens, e pode, inclusive, ser emergente no
âmbito universitário, mas corresponder a outras dimensões da vida e requer
interpretações, indagar e indagar-se, até para descobrir o que não é adoecimento
propriamente dito, mas, talvez, sintomas, a ausência de escuta, ou manifestações
do processo de amadurecimento e do modo de viver. Universidades são
borboletários. Assim, esse sofrimento, quando mal interpretado, ou não
validado, pode quebrar o ovo, machucar a lagarta, fazer sucumbir a pupa ou ferir
a borboleta!

 



[1] Como citar este texto: ARRUDA,
Daniel Péricles. (Vulgo Elemento). A transformação da
lagarta em borboleta
: poéticas sobre o sofrimento psíquico-acadêmico.
Brasil. São Paulo, p. 1-5, 2024. Publicado em: 05 de julho de 2024. Disponível em: 
https://www.vulgoelemento.com.br/2024/07/a-transformacao-da-lagarta-em-borboleta.html.

[2] Professor do Centro de
Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS) da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), campus São
Paulo. Integrante do Núcleo de Estudos em Filosofia e Psicanálise (NEFIPS), da
UNIFESP, campus Baixada Santista.
Pós-doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP); doutor em Serviço Social pela PUC-SP e mestre em Serviço Social
(bolsista do Ford Foundation
International Fellowships Program
, turma de 2010) pela mesma instituição.
Tem especialização Multiprofissional em Saúde Mental e Psiquiatria pela Escola
de Educação Permanente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (EEP/HCFM/USP) e em Arte-Educação pelo Centro Universitário
Senac. Graduado em Serviço Social pela PUC Minas. Psicanalista pelo Instituto
Langage. Supervisor institucional. Arte-educa(a)dor, rapper e poeta conhecido como Vulgo Elemento. E-mail:
pericles.daniel@unifesp.brhttps://linktr.ee/vulgoelemento.

 

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