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Vestígios sobre o conceito de democracia na atualidade

Daniel Péricles Arruda

Docente do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus São Paulo, psicanalista pelo Instituto Langage. 

E-mail: pericles.daniel@unifesp.br

Fabiana Tamires Rodrigues Santos

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Baixada Santista, e mestranda na mesma instituição. 

E-mail: fabiana.rodrigues28@unifesp.br

A palavra democracia advém da justaposição entre demos (povo) e kratía (poder), significando governo do povo ou poder do povo (Gontijo; Bicalho, 2021). Vários(as) autores(as) reportam à Grécia Antiga a respeito da origem do conceito de democracia com o objetivo de criar um regime político que não fosse autoritário e nem baseado em leis opressoras. A constituição democrática de Atenas previa que as decisões relacionadas à vida dos atenienses deveriam ser tomadas em eclésias (assembleias) mediante a participação direta do povo – constituído apenas pelos cidadãos atenienses homens com mais de 18 anos de idade; excluindo, portanto, mulheres, escravizados(as), crianças e estrangeiros(as) (Ribeiro, 2001).

Desde então, o conceito de democracia está vinculado à lei e comumente relacionado à Grécia Antiga do século V a.C.; no entanto, evidências apontam que em outras sociedades mais antigas, como em comunidades específicas; na Mesopotâmia; etc., já existiam práticas entendidas como democráticas. A partir de seu surgimento, o conceito de democracia alterou-se, de modo dinâmico, modificando-se conforme as especificidades sócio-históricas, acarretando profusão e confusão relativas ao seu sentido.

A democracia moderna não corresponde ao seu modelo antigo e, apesar de ser a forma de governo preponderante no mundo, observa-se certo esvaziamento e instabilidade de seu conceito e sua prática em razão de um somatório de fatores inter-relacionados. Por isso, são diversas as perspectivas sobre o conceito de democracia, e isso é um fato. Historicamente, as definições sobre democracia envolvem relações sobre poder e prazer; ações políticas, sistemas e regimes de governo e/ou Estado; lugar, função e tamanho do Estado; noções sobre público e privado; censura e liberdade; respeito; humanidade; ética; diversidade; cidadania e alteridade, por exemplo. Já no século XX, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948, Art. 29, item 2):

No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Como citar este texto: ARRUDA, Daniel Péricles; SANTOS, Fabiana Tamires Rodrigues. Vestígios sobre o conceito de democracia na atualidade. São Paulo. Brasil, p. 1-8, 6 de maio de 2025. Disponível em: vulgoelemento.com.br

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De acordo com Chauí (2005), estamos habituados a uma definição liberal da democracia como um regime da lei e da ordem, que deve garantir as liberdades individuais, porém, esse modelo também reforça o governo de poucos sobre muitos, ampliando a desigualdade estrutural. Já no século XXI, a democracia encontra-se permeada pelo ultraliberalismo, que não parece ser compatível com as demandas atuais, fato que se reflete na ausência de efetividade de direitos fundamentais.

Desse modo, é certo afirmar que a democracia é, ou não deveria ser, isolada, tampouco rígida. Por outro lado, não significa que os sujeitos possam fazer tudo, qualquer coisa, a qualquer hora e de modo arbitrário. Em sociedades declaradas democráticas, comumente, existem leis e pactos culturais para que as necessidades da população sejam atendidas; considerando as contradições e os contrastes entre leis e práticas.

Assim, pelo atual cenário político vivenciado em diversos países, em especial, no Brasil, é pertinente a avaliação acerca do conceito de democracia, hoje, e como se concretiza na realidade, ou seja, nas relações sociais, na organização institucional, na luta pelo reconhecimento humano e pelos direitos fundamentais.

É comum ouvir que democracia engloba a participação dos sujeitos nas decisões coletivas; em construções de alternativas aos problemas sociais; nas escolhas viáveis e em suas efetivações, conforme os objetivos e as determinações da “maioria”. Percebe-se, portanto, que essas especificações, a priori, norteiam algumas indagações: O que é “maioria”? Quem é a “maioria”? Quem são os sujeitos que constituem o grupo chamado de “maioria”?

A lógica de nomear grupos, ou posições políticas, por meio de sua quantidade, potência, ou tamanho, implica pensar nas oposições, como as chamadas “minorias”. De tal modo, qual é a certeza de que a “maioria” está certa? Qual é a base para avaliar se a “maioria” é melhor? Chauí (2005) menciona que a democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Aspecto que faz emergir a seguinte questão: Como operar com os conflitos quando esses possuem a forma da contradição e não a da mera oposição? Os usos, sentidos e contextos dessas expressões emanam por reflexões, pois o debate não está exatamente no tamanho da expressão democrática, mas em sua intencionalidade e capacidade de mando, considerando, inclusive, outros fatores, como:

A globalização (por acarretar a transterritorialização dos fluxos sociais do Estado nacional), a simplificação das complexidades sociais, os desenvolvimentos tecnológico e informacional, a queda da taxa de lucro, a tecnocracia da política, o terrorismo, a imigração, o déficit ambiental, a corrupção, entre outros (Monedero, 2009, p. 223-263).

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Nessa perspectiva, o termo “democracia” pode ser utilizado para camuflar imposições, práticas e sistemas abusivos, que não consideram a voz do outro, suas demandas e seus desejos. Logo, podem produzir o esvaziamento do sentido do termo e confundir a população; operando, inclusive, por meio de ideologias discriminatórias e discursos instituídos que alicerçam o imaginário social (Chauí, 1981/2017).

Por exemplo, a derivação do termo “democracia” aparece no nome da Coreia do Norte (país asiático), oficialmente, República Popular Democrática da Coreia, mas, naquele país, segue-se o regime songbun: sistema de classificação de pessoas conforme a sua trajetória familiar, com os leais e hostis. Em coreano, songbun significa “origem” ou “ingrediente” e constitui a expressão chulsin songbun, ou seja, “origem familiar” (BBC News, 2024).

Podemos olhar para a democracia como um processo histórico e cultural, relacionado a várias dimensões. Ainda assim, a despeito de existirem atributos comuns, não há um único modelo e significação de democracia para todos os Estados. Chauí (2005) aponta que a marca da democracia moderna, em sua passagem de democracia liberal para democracia social, está no fato de que somente as classes populares e os excluídos concebem a exigência de reivindicar e obter novos direitos. No entanto, apesar da flexibilidade do conceito, ao observarmos a qualidade da democracia que alguns países adotam, podemos indagar se todos os países que assim se intitulam constitucionalmente, são substancial e metodologicamente democráticos.

Outro exemplo, foi a última eleição presidencial na República Bolivariana da Venezuela, em 2024. País visto por muitos como um governo ditatorial, mesmo com pleitos realizados para a escolha de seus líderes. Ou seja, democracia e ditadura podem andar juntas? Questionamento emergente no campo político, na época. Trata-se de perspectivas ambivalentes. No caso da Venezuela, em termos contraditórios e irônicos, então, seria uma democracia ditatorial ou uma ditadura democrática? A democracia, em muitos países na América Latina, é confrontada por outras forças, como os golpes políticos; a corrupção, o peculato, a prevaricação; o envolvimento do Estado com o crime organizado; o nepotismo; influência de outros campos institucionais na tomada de decisões, como a igreja; o descumprimento de acordos internacionais voltados para a promoção e defesa dos direitos humanos e do meio ambiente.

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No caso brasileiro, a historiadora Heloisa Starling (2024) afirma que na prática de golpes, como foi o caso do golpe militar de 1964, foram utilizados articulações prévias, planejamentos espúrios, apoios de diversas frentes, e acarretaram mortes, em prol da destituição daquilo que fora escolhido legalmente pelo povo. Na história brasileira, inclusive, a prática de golpes de Estado é histórica, sendo mais recente o que ocorreu contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e a tentativa de golpe contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022/2023. Em resumo, os golpes não são arquitetados de um dia para o outro e o seu término, uma vez efetivado, não ocorre rapidamente.

Comumente, o tempo da democracia não acompanha o tempo da expectativa da população. E isso pode produzir descrédito, uma vez que não há transparência do exercício democrático. O fato de um país ser democrático, não o livra de ter no poder políticos que não são democráticos; políticos que violam direitos e são, declaradamente, contrários aos direitos humanos e ao reconhecimento das diferenças. Esses sujeitos chegam ao poder pela via democrática, como resultado do poder emanado pelo povo por meio do voto. O rapper MV Bill, na música Insalubre (2020), afirma:

É muito fácil, mas nem todo mundo vai entender/ Escolhas trazem consequência e quem se fode é você/ Que está na base da pirâmide, vão tentar te iludir/ Com falsas promessas pra depois te destruir, lembra/ O que eles prometeram em campanha, lembra/ Povo burro vota errado e sempre apanha/

Há aqueles(as) que são enganados(as) pelas narrativas políticas e há também os(as) que não são enganados(as) e não se deixaram enganar, pois são convictos(as) e identificados(as) pelas posições de seus líderes, nomeando-os, inclusive, de mito! Colocando-os como salvadores, como são os casos brasileiro e norte-americano.

A democracia contrapõe-se a outros modos de formação e organização social, como os regimes autocráticos, oligárquicos e ditatoriais. Contudo, não se pode acreditar que a democracia seja suficiente para eliminar a injustiça, indiferença, desigualdade e violência, embora seja uma direção que se apresenta como possibilidade. A democracia é um importante caminho e nos faz refletir sobre essas questões. “A democracia é um empreendimento compartilhado. Seu destino depende de todos nós” (Levitsky; Ziblatt, 2018, p. 253).

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O jogo democrático, portanto, implica o balizamento de regras, convenções de normas, o que, em parte, não está isento das ações do Estado. Sobre essa questão, a obra Democracia e Segredo, publicada em 2011 na Itália e em 2015 no Brasil, contém textos do cientista político Norberto Bobbio (1909/2004), escritos em momentos distintos, nos anos de 1980, 1981, 1988 e 1990, que considera existir, nos regimes políticos, o “poder invisível”, seja oficial ou não oficial – mesmo que a transparência seja um fator essencial em sistemas democráticos –, podendo ser positivo para a preservação da democracia ou prejudicial.

As concepções de Bobbio (2011/2015, p. 32) remetem à experiência italiana. Contudo, são elementos que possibilitam refletir acerca do cenário brasileiro. Inclusive, porque “[…] a democracia costuma ser acusada de não cumprir a promessa de eliminar as elites do poder. Não cumpriu a promessa do autogoverno. Não cumpriu a promessa de integrar a igualdade formal com a igualdade substantiva”.

Hoje, no Brasil, quando integrantes de posições políticas antagônicas, como esquerda ou extrema-esquerda e direita ou extrema-direita, se pautam no termo “democracia”, ao defenderem suas ideias, propostas e projetos de sociedade, certamente, não o utilizam com o mesmo sentido e a mesma finalidade (Bobbio, 1984/2015). Dizer democracia dá ideia de que todos fazem parte do jogo, e que não há imposições e nem autoritarismos. Porém, o “poder invisível” opera nesse campo e demonstra outras facetas.

Ao refletir sobre a política e os políticos, o rapper MV Bill declara que eles (os políticos): “Pertencem ao mesmo saco no conjunto/ O país tá dividido, só que nunca teve junto/ Só tá mais polarizado, cada um olha seu lado/ E que se foda quem tiver vivendo fora do mercado/” (Insalubre, 2020).

Percebe-se que o discurso democrático legítimo não é o mesmo discurso das elites político-econômicas. Em outros termos, são muitas as barreiras na luta por uma sociedade democrática, o que implica a distribuição e promoção equânime de renda, e o fim do sistema de privilégios, assim:

[…] esses obstáculos à cidadania e à democracia fincam suas raízes nas condições materiais de existência e, portanto, naquilo que é a marca da sociedade brasileira: a desigualdade econômica e social, a exclusão política e cultural e a violência como forma natural das relações econômicas e sociais (Chauí, 2005, p. 6).

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E esses aspectos, para o modo de produção capitalista e o sistema neoliberal, não são viáveis, pois deixariam de ser o que são, ou seja, dominadores.

Em uma perspectiva psicanalítica, Mongeló e Mandelli (2023) avaliam que, na sociedade, comumente, há o entendimento de que a democracia se refere ao sistema eleitoral, criando narrativas vazias. Democracia que, para os autores, é escamoteada devido às desmedidas desigualdades econômica, social e racial. Esses aspectos são de importância, para a psicanálise, pois se trata das sequelas do neoliberalismo, marcas dos afetos. Logo, inflamam violências, como o racismo.

A democracia, mesmo não sendo uma categoria ou conceito no campo psicanalítico, contribui para associações, críticas e reflexões sobre a história desses processos. A democracia, portanto, seria inviável, sem a convicção na palavra, enquanto trato e manifestação (Dunker, 2022).

Atualmente, o que se evidencia é que a democracia, especialmente na América Latina, em recorte mais profundo, no Brasil, necessita ser transformada, pois ainda se encontra permeada de elementos autoritários e colonizadores, e, para tanto, faz-se essencial refletir sobre seu conceito, seus atores, pois se está diante de “uma ideia de democracia carente de seu componente popular: uma democracia sem o povo” (Mair, 2007, p. 23). A democracia é um percurso aberto, tanto em sua definição quanto em sua realização.

Por fim, os vestígios sobre a democracia perpassam terrenos em disputa, complexos e contraditórios. São múltiplas as definições teóricas e políticas a respeito, pois democracias passam por modificações, segundo suas referências e interesses. Como afirma Rancière (2005[2014], p. 30):

A democracia não é um Estado acabado, nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e conflitiva expansão; não se reduz ao desenho das instituições, ou à governabilidade, ou ao jogo dos partidos, mas é algo que vem de baixo, desdenhado desde os gregos como o empenho insolente dos pobres em invadir o espaço que era de seus melhores, de seus superiores.

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Referências

 

ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, Declaração universal dos direitos humanos. Resolução 217 A, III, 10 de dezembro de 1948.

BBC News Mundo. O que é songbun, o modelo que determina a vida dos cidadãos da Coreia do Norte de acordo com sua lealdade. 2024.

BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo. São Paulo: Unesp, 2015. (Trabalho original publicado em 2011).

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 13. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. (Trabalho original publicado em 1984).

CHAUÍ, Marilena de Souza. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. Pólis. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, n. 47, p. 23-30, 2005.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2017. (Trabalho original publicado em 1981).

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Lacan e a democracia: clínica e crítica em tempos sombrios. São Paulo: Boitempo, 2022.

GONTIJO, Lucas de Alvarenga; BICALHO, Mariana Ferreira. Democracia. In: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de; GONTIJO, Lucas de Alvarenga; COSTA, Bárbara Amelize; BICALHO, Mariana Ferreira. (orgs.). Dicionário de direitos humanos. Porto Alegre: Fi, 2021.

INSALUBRE. Composição: MV Bill. Intérprete: MV Bill. Produção musical: DJ Caique. Brasil. Rio de Janeiro: Chapa Preta. Vivência. Álbum musical, 2020. (Faixa 1).

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MAIR, Peter. Ruling the void (Governando o vazio). New Left Review, Londres, nov./dez. p. 22-46, 2006. 

MONEDERO, Juan Carlos. El gobierno de las palabras. Política para tiempos de confusión. Espanha: Fondo de Cultura Económica de España, [S.L.], 2009.

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MONGELÓ, Andréa B. Caldeira; MANDELLI, Pedro A. Pouzada. (orgs.). Psicanálise e democracia. Porto Alegre: Melhorpubli, 2023.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014. (Trabalho original publicado em 2005).

RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. São Paulo: Publifolha, 2001.

STARLING, Heloisa Murgel. A máquina do golpe: engrenagens militares e apoio externo: 1964: como foi desmontada a democracia no Brasil, v. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 2024.

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