Texto apresentado no Seminário Aberto promovido pelo
Instituto Langage no dia 24 de outubro de 2024
Convidados: Alfredo Jerusalinsky, Daniel Péricles Arruda e Thereza Bruzzi
Título do Seminário: Adolescência – Tempo de Criações
Por Daniel Péricles Arruda
Boa noite, Pessoal. Primeiramente, gostaria de agradecer ao Instituto Langage pelo convite para compor a mesa deste Seminário Aberto intitulado Adolescência – Tempo de Criações. Agradeço também a presença de todos e todas. E gostaria de dizer que é um prazer dividir este momento com Alfredo Jerusalinsky e Thereza Bruzzi.
Bom, em 2022, Marília Rovaron e eu ministramos o workshop intitulado Tempos e Subjetividades: Reflexões sobre Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas, no VII Congresso Internacional Transdisciplinar sobre a Criança e o Adolescente, realizado pelo Instituto Langage.
Em 2024, tivemos a oportunidade de transformar as narrativas apresentadas naquele congresso no texto homônimo para compor a coletânea O Tempo da Infância e da Adolescência: Criação, Invenção e Possibilidades, organizado por Lisa Ouss e Andrea F. R. Lauermann (2024).
De modo sintético, gostaria de compartilhar algumas reflexões contidas nesse texto e breves elaborações ocorridas após a sua publicação. Vamos lá?
O sistema socioeducativo, voltado para o atendimento de adolescentes e jovens autores de atos infracionais, baseia-se em vários princípios, conforme a potencialidade do ato infracional praticado, e na aplicação de medidas desde a advertência até a internação, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990). Nesse aspecto, gostaria de destacar duas categorias, sem a pretensão de esgotá-las, tampouco de desconsiderar as outras questões que norteiam a temática. Refiro-me aos tempos e às subjetividades desses sujeitos em um cenário institucional impositivo. Para isso, tomo como base três exemplos.
Primeiro: certo dia, um adolescente, ao ser atendido por mim, disse-me: “Daniel, de todas as medidas, a mais fácil de cumprir é a de internação!”. Ao questioná-lo sobre o motivo, ele falou: “Porque a gente fica dois ou três anos parado, deitado e dormindo, e espera o tempo passar […]. Um dia a gente vai sair!”. Uma forma de apresentar-se os contratempos, contra o tempo. De escapar do tempo enquanto punição. Assim, a administração do tempo não seria mais dele, e sim do outro.
O adolescente que não interage com as ações preconizadas pela instituição e pelas legislações (Brasil, 1990; 2012); aquele que não participa das atividades internas ou externas, coloca em xeque a expectativa institucional. O cumprimento das medidas socioeducativas segue determinação judicial, por isso, são obrigatórias, porém, o envolvimento do adolescente nas atividades não (quer dizer, a socioeducação não se faz pela força), mesmo sendo condições e critérios a serem avaliados pela equipe técnica da instituição e do judiciário.
O adolescente, então, como em um jogo de futebol, sabe que não precisa atacar o adversário porque o jogo já está ganho ou o placar o beneficia; é só se defender, tocar a bola de um lado para o outro, fazer a chamada “catimba” ou “cera” – termos utilizados no futebol para designar ações que interferem no desenvolvimento da partida, como cavar faltas ou simular lesões – e quando na linha de fundo, proteger a bola, conseguir um escanteio, pois isso ajuda o tempo a passar “rápido”. O tempo de quem ataca é diferente do tempo de quem defende.
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Assim, ficar “parado”, “deitado”, “dormindo” e “esperando” são estratégias para lidar com o próprio tempo. São ações escolhidas por ele, ao contrário das que a instituição gostaria que atendesse. Nesse caso, observa-se a diferença entre ações socioeducativas e ações impositivas (ou socioagressivas), em um cenário em que o adolescente não quer fazer algo que lhe é apresentado. Em outras palavras, o adolescente deste exemplo não se sentia na obrigação de fazer o gol.
Segundo: em outra ocasião, voltando de uma atividade externa, um adolescente estava sentado ao lado da janela, no ônibus, e, eu, na poltrona de trás. A janela, entre as nossas poltronas, dava passagem ao vento forte e um pouco frio. Pedi para que ele a fechasse. Então, me perguntou: “Você sabe há quanto tempo que eu não sinto o vento?”.
Naquele momento, fiquei parado… Uma janela aberta, para muitos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, é caminho de fuga; mas esse não era o meu pensamento na ocasião, eu acho. Porém, uma janela aberta pode também representar liberdade!
O vento, que me incomodava, foi percebido por ele de um modo diferente, pois parecia fazê-lo sentir prazer, sentir-se como um pássaro rasgando o ar e contemplando a natureza… Presenciar o seu encontro com o vento, observar seus olhos cerrados, o balançar de seus cabelos, e seu semblante suave, foi um momento que eu chamo de aprendizado. Ele me socioeducou, ou psicoeducou.
Essa experiência me faz reportar ao filme O Menino que Descobriu o Vento (2019) – direção de Chiwetel Ejiofor e baseado no livro homônimo de Kamkwamba e Mealer (2011) – que retrata a história de William Kamkwamba (interpretado por Maxwell Simba), um jovem do Malaui, país africano, que, devido à necessidade de autopreservação, observação, curiosidade, coragem e criação, utiliza o vento como fonte de energia para construir um moinho e proporcionar, para sua comunidade, voltada para a economia agrícola, condições para o plantio e a sobrevivência.
Construir um moinho é utilizar o vento. E quanto mais forte é o vento, mais imponente o moinho se torna. Porém, para que pudesse obter êxito com a sua criação, o menino teve que romper, principalmente, o descrédito vindo de seu pai Trywell Kamkwamba (interpretado por Chiwetel Ejiofor).
Observa-se, nesses dois exemplos, a presença do adulto, que pensa que sabe, ou quer imprimir a sua marca com base naquilo que acredita ser certo ou errado. A criação desobedece às certezas, apresenta o novo, contrapõe o convencional para se legitimar.
Nesses casos, os significantes “vento” e “esperar” estão relacionados com o campo singular de cada sujeito, com a sua rede de significantes. Sobre o “vento” como diz o trecho da música O Mundo é um Moinho (1976), de Cartola:
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Diferentemente, o moinho feito por William Kamkwamba triturou o menosprezo daqueles que, a princípio, duvidaram de sua capacidade elaborativa, pois William sentiu existir no vento o caminho revolucionário da criação. O vento estava a seu favor. Entretanto, no contexto institucional, o “vento” pode derrubar importantes práticas ou, até mesmo, evitar sequer que as ideias apareçam. Um ato importante de William foi acreditar em si mesmo, apesar das muitas condições desfavoráveis ao seu redor.
Conforme o embaralhamento das cartas, as instituições e os adolescentes, por vezes, podem ser ventos e moinhos. Podem precisar de ventos ou moinhos… E o significante “esperar” não indica que nada ocorre, que o tempo congelou, e nem que as subjetividades deixaram de existir…
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O tempo das medidas socioeducativas é organizado majoritariamente pelo tempo cronológico, pautado por avaliações técnicas e jurídicas, a partir do comportamento dos adolescentes e das efetivações apresentadas no Plano Individual de Atendimento (PIA). Como menciono no livro Cultura Hip-Hop e Serviço Social [no prelo] “A vida não se resume e nem se define em metas, principalmente, para quem começou tarde a corrida, ou em condições desfavoráveis” (Arruda, 2024, p. 147). Entretanto, cada adolescente vivencia o seu tempo de modo lógico, comumente mal interpretado; muitas vezes não considerado.
No texto O Tempo Lógico e a Asserção da Certeza Antecipada: Um Novo Sofisma, Lacan (1945[1998]) apresenta uma questão de lógica, conhecida como o Sofisma dos Três Prisioneiros. Na história, o diretor de um presídio reuniu três detentos e informou que libertaria um deles mediante a realização de uma prova. Utilizando cinco discos, com três brancos e dois pretos, o diretor fixou um disco em cada um, nas costas, sem que pudessem ver, ou saber, qual cor havia sido escolhida.
Os prisioneiros poderiam ver os discos uns dos outros, porém, não poderiam falar entre si as cores que haviam enxergado. Por objetivo, seria libertado aquele que acertasse a cor de seu próprio disco. Ademais, ainda era necessário justificar as razões de lógica, ao invés de probabilidade. Ou seja, acertar a cor e fundamentar os motivos eram os dois critérios da avaliação para obter a liberdade.
Dentre as discussões dos prisioneiros, destacaram-se três indicações essenciais: 1. “Estando diante de dois pretos, sabe-se que se é branco” (Lacan, 1945[1998], p. 204). Nesse caso, um dos prisioneiros, visualizando dois discos pretos, exprimiria, instantaneamente, que seria branco. Esse tempo é considerado, por Lacan (1945[1998]) como o “Instante de olhar”, um tempo imediato, tempo de fulguração, marcado pela evidência; 2. “Se eu fosse preto, os dois brancos que estou vendo não tardariam a se reconhecer como sendo brancos” (Lacan, 1945[1998], p. 205). Aparece, aqui, a intuição de um dos prisioneiros, acompanhada de condicionalidades. Eis o “Tempo de compreender”, ou seja, para entender o que viu, tempo de meditação; 3. “Apresso-me a me afirmar como branco, pra que esses brancos, assim considerados por mim, não me precedam, reconhecendo-se pelo que são” (Lacan, 1945[1998], p. 206). Aqui, trata-se da asserção sobre si, em que o sujeito finaliza o percurso lógico. Então, é e “Momento de concluir” aquilo que compreendeu ao olhar.
Após se avaliarem entre si, os três prisioneiros concomitantemente deram alguns passos em direção à porta. E, separadamente, disseram que estavam com o disco branco. Basicamente, os três expuseram um argumento similar:
“Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto’. E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, e que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão.” Foi assim que todos três saíram simultaneamente, seguros das mesmas razoes de concluir (Lacan, 1945[1998], p. 198).
Em tese, Lacan (1945[1998], p. 213) afirma que: “1o) Um homem sabe o que não é homem; 2o) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens; 3o) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem”. O saber, o reconhecer e a afirmação apresentam-se como uma lógica.
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Desse modo, entendo que os três tempos apresentados em Lacan (1945[1998]) são pertinentes para analisar os modos como as subjetividades simbolizam os tempos, e como os tempos influenciam as subjetividades. Partindo da finalidade das instituições, as ações socioeducativas devem reconhecer e não sobrepor o tempo jurídico às experiências e manifestações do tempo lógico vivenciado por cada adolescente. Além disso, muito do que se espera do adolescente não acontecerá no período do cumprimento da medida.
Acompanhando os dois exemplos antes exibidos – do adolescente e o vento e do adolescente que considera a medida de internação mais fácil –, apresento, a seguir, o terceiro caso. Trata-se de um rap intitulado Uma História, de Júpiter (codinome do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa), composição elaborada por ele nas oficinas de rap e poesia que ministrava na instituição na época, para analisar a relação dos tempos e das subjetividades:
Você tá ligado que o mundo é isso aí
Vamos curtir o rap, vamos ouvir
A vida é embaçada, se eu fosse um vento
O vento é uma vida que te leva ao pensamento
Fico olhando que eu tô ficando louco
Tipo assim, como se fosse um poço
Os meus pais não vêm aqui me ver
Fico bolado e começo a sofrer
Penso em matar, penso em morrer
Penso em salvar, penso em viver
Na vida do crime eu entrei muito cedo
Achava que era o tal só pra mim ter conceito
Traficava, fumava um, que prejuízo
Na minha infância perdi vários amigos
Mas é Deus o meu grande amigo
Porque sempre está comigo
Refrão:
Quero que a minha história tenha um final feliz
Final feliz, final feliz
Um final feliz é um novo começo
Levar a minha vida e corrigir os meus erros
A vida que eu levo não é fácil, não
Uma rapa de treta tenho no coração
Morar em um abrigo amanhã, quem sabe?!
Ficar longe da bandidagem
Arrumar um trampo e voltar a estudar
É melhor do que cheirar e roubar
Pois sei que no presídio não vai ser bom
Quero correr atrás e investir no meu dom
Cantar e dizer o que eu vivo
Dizer o que eu penso e o que eu sinto
No mundão, família e diversão
Na escola e numa profissão
Sangue bom, fico por aqui, um abraço
Tenha fé em Deus e valorize o seu espaço
Refrão:
Quero que a minha história tenha um final feliz
Final feliz, final feliz
(Júpiter, in: Arruda, 2018, p. 11).
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Júpiter, sujeito que subverteu a posição de “criatura”, indo para a posição de criação, criar-ação, desacreditado por muitos profissionais que o tomaram como sujeito com “comprometimento cognitivo”. E desacreditado, inclusive, por outros adolescentes, que o viam como o “louco”.
No sentido técnico, o rap de Júpiter é constituído por duas estrofes de 16 versos cada, mais os refrãos, um na metade e o outro no término da música. As rimas estão concentradas na combinação entre as duas palavras finais de cada par de versos.
Imagem 1 – Foto do adolescente
Fonte: Arquivo pessoal de Daniel Péricles Arruda.
Durante a composição, recordo-me de sua facilidade em desenvolver suas ideias no papel, conforme a métrica, o tempo, o ritmo e o flow, comumente necessários para o seu estilo musical, conhecido como boom bap; o nome desse gênero musical, criado no final dos anos de 1980 e início de 1990, nos Estados Unidos da América (EUA), refere-se à sonoridade boom (bumbo) e bap (caixa).
Além do trabalho criativo, Júpiter desenvolveu muitas ações e, inclusive, manifestou primeiramente o interesse em participar das oficinas. Ouvia atentamente as orientações, escrevia sem bloqueios, em alguns momentos, se colocava a pensar; cantava em voz baixa, para si, o que escrevia. Após finalizar a composição, mostrou-me para saber o que eu achava. Ensaiou, decorou a música, e me fez um pedido: “Eu quero cantar pra minha mãe ouvir”. E seu pedido foi atendido, pois apresentou o seu rap no evento realizado na instituição, chamado Tarde Poética. Durante a sua apresentação, o adolescente despertou a atenção e a admiração dos presentes. Ao final, foi aplaudido. “Eu nunca fui aplaudido”, disse-me!
O rap de Júpiter é um resumo de sua trajetória. Assim como nos três tempos em Lacan (1945[1998]), observo que o “Instante de olhar” é a sua vivência, olhar para sua história, como a família, criminalidade, morte, vida, as drogas, Deus, a escola e o trabalho. No passo seguinte, o “Tempo de compreender”, caracterizou as participações nas oficinas de rap e poesia, o que o fez caminhar para o “Momento de concluir”, ou seja, sua letra de rap para quem endereça sua mensagem.
Para quem era visto como sujeito com “comprometimento cognitivo”, Júpiter conseguiu fazer muito, como provar o contrário, ou apresentar o contexto de suas questões. Entretanto, a sua arte demonstrou que suas limitações não o impossibilitavam de falar de si; não era impedimento para que pudesse se tornar sujeito.
Mesmo sendo de conhecimento de muitos, vale enfatizar que cada sujeito é singular e vive seus tempos e subjetividades, para além dos pactos civilizatórios ou de qualquer outra forma de medida, mesmo aquelas que dizem ser “socioeducativas”.
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Referências
ARRUDA, Daniel Péricles. Espelho dos invisíveis: a arte no trabalho prático-reflexivo com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação. São Paulo: Expressão & Arte, 2018.
ARRUDA, Daniel Péricles. Cultura hip-hop e serviço social: a arte como superação da invisibilidade social das juventudes periféricas. Curitiba: CRV, 2024. No prelo.
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Lei n. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 jan. 2012.
KAMKWAMBA, William; MAELER, Bryan. O menino que descobriu o vento. São Paulo: Objetiva, 2011.
LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada: um novo sofisma (1945). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
O MENINO que descobriu o vento. Direção de Chiwetel Ejiofor. Reino Unido, Malawi. Dick Pope: Netflix, 2019. [113 min.].
O MUNDO é um moinho. Composição: Cartola. Intérprete: Cartola. In: Raízes do Samba: Cartola. Rio de Janeiro: Copacabana Records, 1976. Vinil. [3min. 55seg.].
OUSS, Lisa; LAUERMANN, Andrea F. R. O tempo da infância e da adolescência: criação, invenção e possibilidades. São Paulo: Instituto Langage, 2024.
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